O Brasil em busca de suas espécies perdidas

Publicado em 30 de junho de 2025
O Brasil em busca de suas espécies perdidas Créditos: Pesquisadores em coleta de campo. Foto: Mariano Pairet

Projeto Pró-Espécies realizou mais de 300 expedições  para frear a extinção da fauna e flora no país

 

Mais antiga instituição nacional para estudos da Amazônia, o Museu Goeldi tem acervo de 4,5 milhões de peças, constituído com a colaboração de naturalistas que passaram pelo Pará no século 19 e deixaram duplicatas de exemplares da biodiversidade coletadas em expedições. Patrimônio afetivo da cidade de Belém, lá os cientistas se encontravam à sombra das árvores para relatos à população local sobre as surpresas das viagens. As descrições da fauna e flora brasileira em acervos de vários museus do mundo estão também online. Coleções de  Auguste de Saint-Hilaire, com mapas, notas, ilustrações botânicas e seus cadernos de campo podem ser acessadas livremente no herbário virtual do Muséum National d´Histoire Naturelle de Paris e Clermont-Ferrand, na França. O naturalista pesquisou florestas do Centro-Oeste, Leste e Sul do Brasil, entre 1816 a 1822. 

Agora no século 21, o mesmo espírito desbravador e amor pela ciência dos naturalistas do passado podem ser reconhecidos nas expedições de campo realizadas pelo Projeto Estratégia Nacional para a Conservação das Espécies Ameaçadas de Extinção (Pró-Espécies: Todos contra a Extinção), instituído pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) e efetuado com a colaboração de instituições parceiras. 

O Pró-Espécies realizou mais de 300 expedições de campo em 16 estados do Brasil, organizadas em 10 Planos de Ação Nacionais para a Conservação de Espécies Ameaçadas de Extinção (PAN) e 11 Planos de Ação Territoriais para a Conservação de Espécies Ameaçadas de Extinção (PAT), abrangendo 62 milhões de hectares – um território superior ao da França – nas cinco regiões brasileiras. O projeto é financiado pelo Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF) e tem o WWF-Brasil como agência executora.

Nesta imensa área, dezenas de novas espécies foram descritas ou redescobertas, algumas depois de décadas sem serem vistas. Os locais observados estão nos estados do Amazonas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Tocantins.

No Brasil, são 4.457 espécies em risco, com 1.253 da fauna e 3.204 da flora, sendo que cada espécie ameaçada precisa de dezenas de outras para continuar vivendo. Para alavancar iniciativas na redução de ameaças e melhorar o estado de conservação, o projeto elegeu 290 espécies categorizadas como Criticamente em Perigo (CR) e que não contavam com nenhum instrumento de conservação na fase de elaboração do projeto.  

“A perda da biodiversidade é um processo silencioso, e evitar extinções representa um dos maiores desafios globais. E com as mudanças climáticas o risco de extinção cresce”, afirma o biólogo e doutor em zoologia Bráulio Dias, que é diretor do Departamento de Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade do MMA. 

O diretor destaca que o Brasil é campeão mundial em biodiversidade, mas o país também chama a atenção  pelo número de espécies ameaçadas. “Precisamos de esforços conjuntos e permanentes para reverter esse quadro”, observa. Em sua opinião, o Pró-Espécies é um exemplo de implementação colaborativa de parcerias globais e locais para assegurar a proteção ambiental.

As mudanças climáticas acenderam um alerta especial à equipe que avaliou algumas das 1.100  cavernas documentadas no PAT Caminho das Tropas, situado em 163 municípios do Paraná e São Paulo. Os pesquisadores constataram alterações na temperatura e umidade, combinadas com a degradação de seu entorno. A preocupação impulsionou o monitoramento da fauna cavernícola com duas espécies entre os principais alvos de atenção: o besouro Coarazuphium ricardoi e o caramujo Potamolithus karsticus. Em 2023 e 2024, a equipe identificou ainda uma espécie de piolho-de-cobra que não era observada desde os anos 40.

Entre os principais órgãos federais que colaboram com o projeto estão o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). 

“As expedições são de extrema importância para a obtenção de novos dados sobre as espécies-alvo do PAN”, ressalta o botânico Marcio Verdi, do Centro Nacional de Conservação da Flora (CNCFlora), que coordena o Plano de Ação Nacional Bacia do Alto Tocantins, integrado pelo JBRJ, autarquia do MMA onde ele atua na  Coordenação de Projetos de Estratégias para Conservação de Espécies Ameaçadas de Extinção. Ele cita a obtenção de informações sobre distribuição de espécies, impactos, incidentes sobre cada uma, estimativas de população e também dados ecológicos como Habitat, floração, frutificação, visitantes florais como extremamente importantes para o estudo das espécies.

O PAN Bacia do Alto Tocantins coletou espécies de plantas ameaçadas durante expedições realizadas em 2024, na Serra da Mantiqueira (SP, MG e RJ) e na Chapada dos Veadeiros, no Cerrado goiano, onde foram feitas descobertas inéditas ainda não descritas e endêmicas do município de Cavalcante. “O principal desafio é o impedimento de acesso por um empreendimento minerário a determinadas regiões da serra de Niquelândia (GO), onde ocorrem várias espécies”, conta Marcio Verdi. A diversidade do bioma se destaca entre as mais importantes do mundo. 

Marcio Verdi adianta que a expectativa é que os dados coletados que estão em análise pela equipe cheguem a nove novas espécies descobertas. E cita a família “Velloziaceae, até então sem ocorrência identificada para o estado de Goiás”, considerada de grande relevância para os pesquisadores. 

No PAT Meio Norte, área de transição dos biomas Amazônia (81%)  e Cerrado (19%), entre o Pará, Tocantins e Maranhão, as equipes sentiram impactos ambientais, previstos já no planejamento logístico das viagens. 

“As expedições foram planejadas levando em consideração as localidades conhecidas para a ocorrência das espécies-alvo ou ainda buscando novas ocorrências em ambientes com grande similaridade àqueles de ocorrência confirmada. Os desafios foram vários, entre eles a alta prevalência de áreas degradadas e a dificuldade em localizar espécies”, conta a supervisora de Anuência sobre Fauna, da Secretaria de Meio Ambiente do Maranhão, coordenadora do PAT, Leyciane Souza.

Mas as surpresas boas foram maiores do que os desafios. Esse PAT realizou cinco expedições para pesquisa de peixes, uma para fauna cavernícola, uma para flora e duas para avifauna. Leyciane Souza conta sobre uma rara subespécie de mutum. “O registro do Crax fasciolata pinima na Terra Indígena (TI)  Mãe Maria  foi surpreendente pelo número de indivíduos registrados. É gratificante porque foi encontrado com o apoio da comunidade indígena, que participou como guia dos pesquisadores nas expedições”, relata Leyciane Souza.

A descoberta foi significativa. “Na primeira expedição em busca do Crax, os pesquisadores não encontraram os indivíduos nos pontos de ocorrência históricos, fora das unidades de conservação. Dessa forma, tivemos que investir em buscar na TI Mãe Maria e arredores, onde tivemos sucesso e foram encontrados seis indivíduos”. Leyciane Souza ressalta que o apoio dos indígenas foi fundamental. “O desdobramento foi a construção de um plano de educação ambiental dedicado para aquele território”, comemora Leyciane Souza.

“O Brasil está de volta à agenda global. Temos muitos especialistas no tema, temos muitos programas e projetos de biodiversidade”, relata Dias. Foram incentivadas as parcerias com órgãos estaduais de meio ambiente para que fossem estabelecidos os Planos de Ação Territoriais. “Hoje trabalhamos com 16 estados bastante comprometidos com esse esforço”. 

Bráulio Dias acentua a importância dessa contribuição para as estratégias de conservação num país com a dimensão do território brasileiro. “Importante destacar que cada um desses PATs ajuda a conservar várias espécies ameaçadas nessas áreas que foram priorizadas e acabam protegendo outras espécies no território além das criticamente ameaçadas, que são os alvos específicos. Então o Pró-Espécies traz um benefício ainda maior”, exclama ele.

Em cada trilha aberta na mata, em cada pedra virada no leito de um rio ou caverna, as expedições científicas carregaram não apenas instrumentos e cadernos de anotações, mas a esperança de reverter o silêncio que se abate sobre a biodiversidade ameaçada. Foram jornadas de escuta e reencontro com formas de vida que resistem em fragmentos de floresta, cerrados queimados ou grutas úmidas, onde o tempo parece suspenso. Ao documentar, estudar e proteger espécies à beira do desaparecimento, os cientistas se tornam guardiões do futuro — tecendo, com paciência e precisão, uma rede de cuidado que impede que histórias únicas da natureza se percam para sempre. 

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