Uma mostra da biodiversidade brasileira pode ser contemplada e sentida – especialmente no frio intenso que chega a menos de zero grau nos invernos – na casa do extrativista de pinhão Jaison de Liz Rosa, município de Painel, no Planalto Serrano Catarinense (PSC). A propriedade de 40 hectares abriga uma floresta de araucárias (Araucaria angustifolia) que tem sido mantida em pé ao longo de gerações da sua família graças à atividade de manejo extrativista. A Floresta Ombrófila Mista (FOM), como é chamada a floresta de araucárias, é um ecossistema do Domínio da Mata Atlântica que ocupava originalmente 200 mil km² nas regiões Sul e Sudeste do Brasil, mas que hoje é gravemente ameaçado de extinção, com remanescentes em apenas 1% a 4% nas áreas originais.
A conservação e restauração dessas florestas no PSC fazem parte das estratégias para conservação de espécies ameaçadas de extinção elaboradas no âmbito do Plano de Ação Territorial para Conservação de Espécies Ameaçadas de Extinção do Planalto Sul – PAT Planalto Sul, coordenado conjuntamente pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) e pela Secretaria Estadual do Meio Ambiental e Infraestrutura do Rio Grande do Sul (SEMA) e que conta com a parceria da Associação Vianei de Cooperação e Intercâmbio no Trabalho, Educação, Cultura e Saúde, conhecida na região como Centro Vianei de Educação Popular, que tem atuado pela implementação da cadeia produtiva do pinhão e geração de renda para famílias agricultoras que há décadas têm hábitos alimentares, cultura e renda com fortes vínculos nesse ecossistema. O PAT integra o Projeto Estratégia Nacional para a Conservação de Espécies Ameaçadas de Extinção -Pró-Espécies: Todos contra a extinção, coordenado pelo do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), tendo o WWF-Brasil como agência executora e o Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio) como agência implementadora.
No Planalto Serrano Catarinense, existem cerca de 12 mil famílias que colhem pinhão, sendo que para 30% delas essa é uma das principais fontes de renda. Essas famílias são responsáveis por aproximadamente 75% da produção de pinhão do estado de Santa Catarina. A comercialização do pinhão para essas unidades familiares chega a 50% da renda total dos seus Sistemas Agroflorestais (SAF) tradicionais e as araucárias dividem espaço com outras espécies, tais como: frutíferas nativas (uvaia, araçá, goiaba serrana entre outras), erva-mate, bracatinga, canelas entre outras espécies. Devido à importância econômica do extrativismo do pinhão em consonância com a conservação da biodiversidade, o Centro Vianei coordenou, no ano de 2022, a elaboração do Plano de Ação da Cadeia Produtiva do Pinhão, contando com diversas entidades.
“O extrativismo do pinhão na Serra Catarinense é das atividades econômicas melhores adaptadas à conservação dos ecossistemas naturais, pois permite a conservação da floresta em pé, e gera benefícios socioambientais para as comunidades envolvidas” afirma Leonardo Urruth, coordenador do PAT Planalto Sul (SEMA-RS).
“A cultura do pinhão na minha família é mais que centenária. Lembro que meu avô tirava pinhão para tratar porcos no verão”, conta Jaison de Liz Rosa. A inexistência de mercado até os anos 90, permitia que as sementes da araucária chegassem fartamente aos cochos, mas estavam sempre presentes na culinária de povos originais, como os indígenas, e tradicionais, como os agricultores familiares. “O prato básico era a paçoca socada no pilão com carne, que se fazia para sair pros matos. Meu pai ainda sabe fazer o café de pinhão, que é descafeinado, o mesmo sabor, mas mais suave, como uma cevada”, compara.
Jaison de Liz Rosa diz que seu município é considerado “a capital do pinhão” no estado e considera que com o projeto de incentivo ao cultivo e uso sustentável das florestas, daqui 10 anos os produtores possam comemorar um título de produto cultural do extrativismo. “Estamos caminhando”, exclama. Ele aposta especialmente nas enxertias para melhoramento genético das árvores, que foram desenvolvidas por pesquisadores de universidades de Santa Catarina, Epagri (Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina) e Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária).
Cuidados com esse ecossistema significam a conservação de florestas do belíssimo e alimentício pinheiro- brasileiro, que é habitado por rica fauna, incluindo o endêmico papagaio-charão, que se destaca na mata por manchas vermelhas nas penas verdes e bico alaranjado. Todo ano, milhares de papagaios empreendem migrações do Rio Grande do Sul até o PSC em busca das araucárias durante o período de maturação do pinhão. O pinhão possui alto valor nutricional, sendo composto de minerais como cobre, zinco, manganês, ferro, magnésio, cálcio, fósforo, enxofre e sódio. E é também fonte de potássio e ácidos graxos como ômega 6 e ômega 9.
O PAT Planalto Sul é um instrumento de planejamento que foi elaborado de forma participativa, contendo ações de conservação prioritárias a serem executadas por diversos atores sociais de diferentes segmentos da sociedade comprometidos com a conservação e o uso sustentável da biodiversidade.
A coordenação dos trabalhos junto aos atores da cadeia produtiva é responsabilidade do agrônomo Natal João Magnanti, que tem extensa experiência com o pinhão e doutorado em agroecossistemas na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com outros trabalhos voltados para a biodiversidade e desenvolvimento socioeconômico da agricultura familiar no território da serra catarinense. Ele é coordenador de projetos do Centro Vianei de Educação Popular e por isso foi escolhido para trabalhar junto ao PAT Planalto Sul no âmbito do Pró-Espécies.
“Nossos primeiros projetos com a cadeia produtiva do pinhão iniciaram por volta de 2010, com o Ministério do Meio Ambiente, depois tivemos outro com financiamento do Funbio durante três anos, com bastante êxito. Neste projeto com o PAT Planalto Sul, em aproximadamente um ano foram desenvolvidas atividades bastante importantes, entre elas destaco o diagnóstico, o seminário e a oficina participativa recentemente realizada com integrantes da cadeia produtiva do pinhão para discussão qualificada das prioridades que serão desenvolvidas neste Plano de Ação e que estão sistematizadas e serão divulgadas por meio de um e-book que está em confecção”, relata Natal Magnanti.
Segundo o coordenador de projetos do Vianei, é importante frisar que o plano tem 26 ações prioritárias. “Algumas das ações do plano, o Centro Vianei tem expertise para executar, e outras serão necessárias colaborações de outras instituições”, comentou. As ações estão de acordo com as demandas dos extrativistas, como aconteceu em 31 de março e primeiro de abril, na segunda festa da colheita do pinhão, realizada em parceria com o Sindicato dos Trabalhadores na Agricultura Familiar de São Joaquim e Região. “Dentro da festa fizemos um seminário sobre a cadeia produtiva, com a participação dos extrativistas, do PAT, universidades, poder público, com discussão sobre o que cada instituição fará em 2023 e sobre as ações que já estão em andamento”.
Na região do Planalto Serrano Catarinense, foi intensa a exploração da araucária para a indústria madeireira no início do século XX, e até a década de 1960 teve impactos expressivos na economia dos estados do Sul, com crise no setor em Lages, o maior município de Santa Catarina, que na época também abrangia também dos atuais municípios de Bocaina do Sul, Palmeira, Otacílio Costa, Capão Alto, Correia Pinto, Ponte Alta e São José do Cerrito. Na década de 60, as dificuldades econômicas provocaram êxodo para áreas urbanas e crescimento das periferias, além de problemas sociais relacionados à falta de perspectivas pelas mudanças do eixo de desenvolvimento.
Os locais onde hoje se busca o uso sustentável das florestas de araucária escaparam da devastação. Entre as demandas da cadeia produtiva, Natal Magnanti cita a expectativa de manejo sustentável da araucária, apontada por Jaison de Liz Rosa. “Juntamos pesquisadores, extrativistas e o PAT no mês de maio no município de Painel. Essa oficina foi realizada por meio de um projeto de pesquisa da UFSC campus de Curitiba, coordenado pelo professor Siminski, para discutir as estratégias de manejo de araucárias e como serão conduzidas unidades de referência de manejo para aumentar a produção de pinhão nos próximos anos.” Ele observa que será necessário observar as legislações de proteção às araucárias. “É uma espécie ameaçada de extinção, com corte proibido, tem que haver estratégias bem pensadas”.
Segundo Natal, a safra de 2023 está atípica, começou neste ano tardiamente. Em 1º de abril, data onde é legalmente possível comercializar o pinhão, as sementes não estavam maduras.. “Neste ano atrasou pelo menos 20 a 25 dias a safra. A previsão é de safra menor e tendência de aumento de preço em relação à média dos outros anos e também com tendência de aumento de consumo. O preço do pinhão vai variar conforme os diferentes tipos de mercados que o consumidor irá se abastecer”. Ele cita que os extrativistas realizam vendas diretas ao consumidor, para supermercados e agroindústrias do território, no entanto os atacadistas de fora da região ainda são os maiores compradores do alimento, distribuindo-o preferencialmente nas Centrais de Abastecimento (CEASAS) do estado.
“A cadeia produtiva está em ascensão, valorizada ano a ano, com mais gente adquirindo e experimentando o pinhão, que é um produto de outono e inverno. Essa procura tem beneficiado os extrativistas, que por sua vez fazem coletas mais seletivas. E um cenário que vem chamando a atenção é a pesquisa da enxertia, o que podemos chamar de domesticação da espécie, mais próxima aos cultivos tipo pomares. Atualmente, a grande maioria da produção é realizada de forma extrativa em remanescentes e na regeneração das florestas conduzida pela agricultura familiar do território”.
Jaison de Liz Rosa diz que os testes de enxertia começaram há cerca de 14 anos pelos pesquisadores. “Agora eles têm certeza dos resultados”, aposta o extrativista da serra catarinense. Com conhecimento prático, explica que a enxertia pode cruzar características genéticas das araucárias e tornar as safras melhores distribuídas durante os períodos de safra. “Os pinhões amadurecem em quatro períodos a partir do dia 25 de março até o chamado pinhão de macaco estar pronto para colheita em julho”.
Segundo Jaison de Liz Rosa, entre suas quase 600 mil árvores, o pinhão de macaco é produzido por apenas umas dez delas. “Uma única árvore da nossa propriedade, que deve ter uns 25 anos e nasceu sozinha, sem plantio, em 25 de fevereiro está pronta para colheita. Pode ir lá todo ano que está lá”. Em sua opinião, isso significa uma possibilidade de clonagem por meio de enxertia, que pode melhorar em muito o abastecimento do mercado.
Embora tenham sido plantados pinheiros nos anos em que significaram renda para a indústria madeireira, segundo Jaison, a icônica responsável pelo plantio das florestas remanescentes ainda é a gralha azul. “Não é abundante como era antigamente, mas temos uma boa população delas. Ainda é fácil ver cruzando o céu com a semente do pinhão no bico pequeno, mas duro suficiente para romper a casca. É um bicho muito bonito.”.
Jaison conta que a ave enterra as sementes a poucos centímetros da superfície, em partes fofas do solo, como na beira de pés de xaxim. O que se transformaria em novas árvores é descoberto por javalis, porcos da Europa que no Brasil escaparam de criadores invadindo áreas nativas principalmente no Sul e que podem pesar até 130 kg e possuir até 1,8 m de comprimento. Eles comem pequenos mamíferos e o pinhão também faz parte de sua dieta. “Em nossa propriedade nunca tínhamos avistado até o ano passado. Neste ano, vimos uma manada com 80 javalis, um bando muito grande. Javalis atacam até terneiros (bezerros)”, ressalta.
O Planalto Serrano Catarinense é a região mais fria do Brasil, localizada a cerca de 100 km do litoral com altitudes de aproximadamente 1.000 a 1.800 metros – o que proporciona cenários espetaculares, com paredões de pedra, rios, córregos, montanhas e cachoeiras. A neve a torna ainda mais atrativa ao turismo. “Este ano ainda não deu capucho (flocos que se acumulam), mas já tivemos chuva congelada”, conta Jaison.
Os pais dele já recebem turistas em casa. E o prato principal é sempre baseado no pinhão, que os visitantes ficam curiosos para conhecer. “O turismo está ficando mais forte há três anos, com mais expressão como fonte de renda. Com certeza vai abrir com força em Painel, que aproveita bem a proximidade com Urupema, conhecida como a cidade mais fria do Brasil”.
Jaison diz que ainda não conseguiu montar estruturas para que os turistas possam fazer trilhas sem guia em sua propriedade, mas já recebe alguns grupos que libera para passeios com a responsabilidade de acompanhá-los na floresta. E considera que o pinhão “tem tudo para ser boa fonte de renda, até por ser alimento nutritivo e livre de agrotóxicos”. Ele cita a merenda escolar e diz que já faz entregas em duas escolas municipais, mas pretende que seja aceita também em escolas estaduais.
“É uma planta que dá muito lucro. Sem necessidade de venenos nem adubo e que produz por até 50 anos”. Segundo o extrativista, não apenas as pinhas cheias de sementes nutritivas podem ser aproveitadas. “A casca é excelente para lareira, os galhos podem ser aproveitados para carvão e pode-se fazer manejo para usar as árvores como madeira”. Especialmente aquelas que estão velhas ou têm pouca expressividade nas safras de pinhão. Nos estados sulistas são comuns as vendas de nó-de-pinho até mesmo em supermercados. Essa é uma parte que fica entre galhos e o tronco e tem mais durabilidade no fogo.
Entre os pratos mais tradicionais de pinhão estão também os consumidos após cozimento em água e o que chamam de “sapecada”, em que são jogadas as sementes em uma fogueira de grimpas (galhos secos do pinheiro) , além dos pinhões assados na chapa do fogão à lenha. Os hábitos do passado são apreciados por turistas,. Mas as perspectivas na culinária são muito maiores.
“As mulheres são fundamentais na cadeia produtiva do pinhão, pois somos nós que fazemos os testes e inventamos receitas de pratos. A gastronomia é essencial para o turismo e eu sou apaixonada pela araucária”, afirma Valsíria Kuhnen Ribeiro, ativista de duas associações, a de produtores, Renascer, e a de turismo, Acolhida na Colônia, em Urubici. Ela também faz parte do PAT Planalto Sul.
Valsíria investe no agroturismo desde 2011 e diz que todos os alimentos que serve são feitos com produtos plantados por ela. Ela também viaja para buscar novos conhecimentos nos estados e cidades onde há projetos com base nas oportunidades oferecidas pelas florestas do pinheiro brasileiro tanto na área de manejo de mudas como na gastronomia. Já tem experimentos de diversas receitas que inventou e aprendeu com pinhão. Canjicas, churrasco vegetariano, nhoque, omelete, pão. Também faz teste com congelamentos dos produtos, já que a semente in natura ela diz que perde o sabor. E prepara o tradicional sagu da Região Sul, substituindo a fécula de mandioca por pinhão, que naturalmente fica granulado quando processado. Uma de suas expectativas em relação ao PAT é a aquisição de máquinas que justamente ofereçam a possibilidade de transformar a textura do pinhão processado para a fabricação de farinhas e a ampliação das opções gastronômicas.
“A atividade de extrativismo do pinhão necessita de um olhar atento do poder público e da sociedade, pois os frutos deste trabalho beneficiam as comunidades envolvidas, mas também a conservação de um ecossistema ameaçado e o bem-estar das futuras gerações”, finaliza Luthiana Carbonell, coordenadora do PAT Planalto Sul (IMA-SC).